canal manxa emite em sintonia com todos os erros ortográficos possíveis
© R.X. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

19.4.04

ACÇÃO

2002-02-18 22:06

JOSÉ DA MANHÃ- Olá, boa tarde, chamo-me José da Manhã, em directo da minha cadeira!

PEDRO DE ONTEM – Olá, boa noite, eu sou o Pedro de Ontem, da cadeira!

DOROTEIA GÊMEA- Olá, bom dia da cadeira. Eu sou a Doroteia Gêmea!

JOSÉ DA MANHÃ- A notícia de abertura do nosso jornal do mundo começa com uma ligação ao nosso Enviado à Espera, para a última actualização sobre os terríveis acontecimentos da Quadra do Natal. Alô Enviado à espera, estás-me a ver?

A imagem filmada por uma câmara de video (amadora) é projectada num ecran suspenso, e, como fundo, um chuveiro

ENVIADO À ESPERA- Não muito bem. Mexe-te um bocadinho para a esquerda. Ah! Assim já está melhor. Pois, José da Manhã, aqui, a situação está mesmo terrível. A chuva continua a cair do céu com mais intensidade do que na minha última intervenção hà alguns minutos atrás e, segundo alguns testemunhos que recolhi entre os populares, é mais do que aquilo que eles precisam. Isto porque, ao que percebi, a maioria já têm água ao domícilio. De volta a ti, José.

PEDRO DE ONTEM- Desculpa intrometer-me, à Espera, mas...

ENVIADO À ESPERA- Quem é que fala? Estou com problemas no meu auricular e não consigo ver-te.

PEDRO DE ONTEM- Sou eu, o Pedro de Ontem.

ENVIADO À ESPERA- Ah! Sim. Diz lá, Pedro.

Só a voz, sem imagem.

REPORTER DE LÃ- Alô pessoal, aqui está todo mundo bailando loucamente...
E as pessoas à volta do apresentador começam a dançar, parando quando ele para de falar.

JOSÉ DA MANHÃ- Obviamente um pequeno problema técnico, voltaremos já após um curtíssimo intervalo.

Sucedem-se um conjunto de imagens, sem nexo, projectadas no ecran.

PEDRO DE ONTEM- A emissão está de novo no ar, e para si que agora ligou o seu televisor eu sou o Pedro de Ontem. Voltando, de novo, ao nosso Enviado à Espera, eu gostaria de perguntar-te se já sabes quando é que a chuva vai parar de cair.

ENVIADO À ESPERA- Bom, segundo os especialistas que eu juntei à minha volta...

E vê-se, no ecran, o Enviado a chamar algumas pessoas que se dispõem, em semicirculo, ao seu redor.

ENVIADO À ESPERA- o cenário é este... -E fazendo um gesto demorado com o braço direito, como se estivesse a apresentar algo, enquanto a camara o segue, ao longo de uma série de rostos muitos abelhudos, para se fixar num deles que segura um cartaz, onde está escrito:
É NATAL QUEREMOS SOL NÃO CHUVA

JOSÉ DA MANHÃ- Foi o nosso Enviado à espera. A emissão passa para ti Marques Gêmeo.

MARQUES GÊMEO- Obrigado José. E no desporto, a noticia do dia é, sem dúvida, sobre os festejos em que muitos milhares de sócios e admiradores do clube de boxe “Os Bem Amados” estão neste momento, e espontâneamente porque, ao que tudo indica, os organizadores fugiram com o álcool, entretidos. E é o que se pode chamar uma entrega total e distraída, como se pode ver pelas imagens do nosso homem-camera. Estão já contabilizados, segundo dados dos serviços secretos, uns milhares de espezinhados, a maior parte deles mortos, felizmente, e bastantes feridos graves, infelizmente. José.

JOSÉ DA MANHÃ- Pois muito obrigado, Marques, pela bela reportagem sobre os alegres, e pacíficos, festejos. E um telex que acabamos de receber na nossa redacção, dá-nos conta de que ninguém foi preso porque, segundo a policia, todas as mortes foram acidentais, felizmente. E para as familias que ainda não sabem de nada fica, desde já e no ar, a promessa de que assim que deitarmos mão aos nomes dos falecidos teremos o maior prazer em os passar no ecran, em primeira mão e com música de Natal a acompanhar. Pedro.

PEDRO DE ONTEM- Pois ainda bem que tudo acabou bem e sem aquela violência a que já estamos acostumados, mesmo à hora das refeições. E, já a seguir a um curto intervalo, vamos em directo com a Carla Já Sabiam, que está na cama com o Ministro das Regiões do Mundo.

As luzes apagam-se, para se acenderem de imediato.

PEDRO DE ONTEM- Olá Carla, quais são as últimas do Ministro das Regiões do Mundo?

CARLA JÁ SABIAM- Olá, boas tardes onde for, bom dia para os que acordaram, e boa noite para os que estão a dormir. Como ia começar a dizer, as últimas foram dadas já quase sem força nenhuma, mas com a ajuda de uma vitamina, e realço, um só vitamina porque as outras foram deitadas fora, que está para ser patenteada devido às grandes expectativas que os seus descobridores têm para ajudar, no mundo inteiro, a combater um dos tipos de pobreza mais antigo: a sexual, como não podia deixar de ser.

DOROTEIA GÊMEA - Mas, Carla, como te sentiste, uma vez que estavas por dentro do assunto, quero dizer, o assunto estava já há muito tempo dentro de ti. Estás mais aliviada?

CARLA JÁ SABIAM- O que te posso dizer, Doroteia, é que, e muito honestamente, após estas duas semanas de directos ao assunto, ainda me apetecia mais. E vou-te explicar porquê: em primeiro lugar, e como se diz lá na minha aldeia «não há fome que não dê fartura, nem fartura que não dê fome», já há muitos anos que não fazia directos desta natureza devido à minha opção de primeiro a familia e depois a carreira, felizmente o meu marido pensa o contrário, o que traz um bom balanço à nossa relação; em segundo lugar, porque não foi tão bom como as imagens o pareciam demonstrar: creio que devido a dificuldades técnicas e físicas a produção foi obrigada a intercalar com imagens de outras profissionais. Em terceiro e penúltimo lugar, porque o que importava era o teste da vitamina, para o aumento da força activa: não havia lugar a preliminares nem a posterioris, pelo que me senti, quase sempre, completamente preenchida, com excepção para os momentos em que o Ministro me dizia, entre arrotos e lambidelas, o bom que era para ele, e para o seu ministério, eu ser uma profissional boa, e muita dada, também. Senti que foi, do menos bom, uma honra, em nome das regiões. E daqui é tudo. A missão passa para ti Marques.

MARQUES GÉMEO- Ah! Meus caros telespectadores, desculpem-me a franqueza, mas devo de confessar o quanto eu gostaria de ter sido escolhido para fazer estes directos. Infelizmente o Ministro não concordou. Por razões políticas foi-me assegurado. Mas é um assunto que continuaremos a acompanhar de perto, com especial atenção da minha parte. E vamos para um curtíssimo intervalo para comercializar uns comerciais que nos pagaram para pôr no ar. Voltaremos já.

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
AO PEQUENO ALMOÇO, AO ALMOÇO E AO JANTAR TODOS COMEM O QUE PODEM, PORQUE NÃO DEPOIS DE DEITAR. SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, UM SEGREDO CADA 24 HORAS. DESCONTOS NOCTURNOS PARA OS QUE NÃO SOFREM DE INSÓNIAS: MEDIANTE COMPROVATIVO

PEDRO DE ONTEM- De novo consigo, senhor telespectador, para lhe trazermos as noticias onde elas acontecem, porque nós estamos lá e você não. E creio que, segundo ordens da redação, vamos entrar de novo com as últimas do nosso especial sobre os terríveis acontecimentos que estão a assolar a época de Natal um pouco por todo o mundo. Então, Enviado à Espera, quais são as últimas novidades.

ENVIADO À ESPERA- Olá, mais uma vez. As últimas noticias são, deveras, aterradoras. A chuva não parou, isto apesar dos protestos da população. Houve mesmo um popular que pôs o seu telemóvel à disposição do pároco para que ele tentasse estabelecer contacto com o poderoso lobie divino. Mas segundo um outro popular, que se disse um perito na matéria, como não havia rede naquele região só com a sua cana de pesca é que seria possivel conseguir tal ligação. Mas tal não foi possível, ao que apuramos porque o filho do dito perito foi pescar à linha e levou a cana com ele. E o certo é que tudo se parece conjugar para que a chuva, além de ser horrendamente húmida, continue na sua opção de cair do céu sem dó nem piedade. De novo para ti Pedro.

PEDRO DE ONTEM- Obrigado, Enviado. Voltaremos a ti em breve. Fica onde estás e não te mexas.
Aqui , no estúdio, temos o Cândido Repetido, que é um especialista em assuntos dispersos. Boa noite, Repetido, o que é que pensa sobre este horrendo acontecimento de chover contra a vontade das pessoas?

CÂNDIDO REPETIDO- Eu, que não me formei na universidade... devo de dizer que as pessoas têm razão. Ninguém pode ser obrigado a ter o que não quer, muito menos o que não pediu. Isto, só para lhe dar um exemplo...

PEDRO DE ONTEM- Muito rápido, pois temos de passar para outro directo.

CÂNDIDO REPETIDO- ...pois como eu dizia, e só para lhe dar um exemplo...

PEDRO DE ONTEM- Sim, diga lá...

REPORTER DE LÃ- Alô de novo, por aqui continua todo o mundo a dançar loucamente...

PEDRO DE ONTEM- Obrigado Lã, mas não te queremos no ar. Pelo menos para já.

REPORTER DE LÃ- Não percebo. Eu estou aqui na terra do Caipira.

PEDRO DE ONTEM- Bom, a emissão prossegue daqui, com o nosso convidado Repetido. Pois diga... o que tem a dizer.

CÂNDIDO REPETIDO- Como eu estava a tentar dizer, se tu fores a um restaurante e pedires um prato de peixe e, por exemplo, te trazem um prato vazio tu recusas, não é? Pois o mesmo se passa com a chuva: se as pessoas exigem sol, pois é sol que elas tem de ter.

MARQUES GÉMEO- Você é um génio, Repetido. E aí para casa, não se mexam que nós voltamos já, e a audiometria agradece.

2 TELEFONISTAS COM AURICULARES ENTRAM EM CENA ACOMPANHADOS PELOS ENTREVISTADOS (DE BRAÇO DADO, OU PELA MÃO?)

TELEFONISTA 1- Senhor António, daqui fala o audiometro.

SENHOR ANTÓNIO- Fala quem?

TELEFONISTA 1- O audiometro. É só para lhe perguntar que programas de televisão é que o senhor António não está a ver?

SENHOR ANTÓNIO- Pode repetir a pergunta, é que eu não estou a ouvir bem. Está muito barulho aqui na mina.

TELEFONISTA 1- Então está a falar do telemóvel?

SENHOR ANTÓNIO- Por acaso estou. Como é que adivinhou?

TELEFONISTA 2- Está sim, dona Maria?

DONA MARIA- Estou.

TELEFONISTA 2- Daqui fala o audiometro. Posso perguntar-lhe se está a ver televisão?

DONA MARIA- Espere um bocadinho que eu vou pôr a televisão mais baixa. Pronto, diga lá ò senhor.

REPORTER LÃ- Alô, pessoal, daqui falo eu de novo...

TELEFONISTA 2- Desculpa lá ò Lã, mas ainda não estás no ar.

REPORTER DE LÃ- Eu sei. Estou na terra do Caipira.

DONA MARIA- Ai! Ò senhor Lã, está mesmo na terra do Caipira? Sabe-me dizer se está por aí aquele actor charmoso... o...

JOSÉ DA MANHÃ- De novo no ar com as notícias mais importantes do dia, um pouco por todo o mundo. E vamos já para o Nuno Repetente, ao telefone do país Obscuro, assim referenciado por razões de segurança, que tem noticias de última hora sobre um grave acontecimento que aconteceu há alguns minutos. Nuno, estás a ouvir-me?

NUNO REPETENTE- Não. Não te oiço. Podes repetir?

JOSÉ DA MANHÃ- Nuno, estás a ouvir-me?

NUNO REPETENTE- Não, José. Já te disse que não.

JOSÉ DA MANHÃ- Senhores telespectadores, pedimos desculpa por esta interferência estranha aos nossos técnicos. A emissão prosseguirá com o Marques Gémeo, e mais desporto.

MARQUES GÉMEO- Obrigado José. Pois iremos continuar com a nossa noticia de abertura para o desporto. Eu sou o Marques Gémeo e você está no canal certo, seja em que hora ou dia for. Conte connosco e nós contaremos consigo. Pois a noticia sensação de hoje é relativa aos grandiosos festejos que os associados, e amigos, do clube de boxe “Os Bem Amados” estão a celebrar com desmesurado entusiasmo. No entanto, após um inicio fulgurante, começa já a evidenciar-se uma acentuada diminuição dos participantes; uns por cansaço, ou por ferimentos ligeiros, muitos com ferimentos de bastante gravidade e, a maior parte espezinhada por amigos, ou não, nesta grande demonstração de calor humano e entrega total.

DOROTEIA GÊMEA- Olha, Marques, e quanto à actuação preventiva da policia, que pudesse, eventualmente ter tido um papel mais preventivo?

MARQUES GÉMEO- Bom, o que te posso dizer, Doroteia, é que a policia estava extremamente alerta e a postos para intervir em caso de necessidade mas, o que é um facto é que não houve necessidade, isto porque as pessoas estavam somente a caminhar pelas ruas da aldeia, celebrando efusivamente, até que o inspector Soares, que se encontrava de folga, ao passar de carro nas traseiras da marcha celebrante, deparou com o primeiro dos participantes caido por terra. Por necessidade pessoal, precisava de saber que horas eram e perguntou-lhe. Como não obtivesse resposta, saiu do carro, chateado, o que se compreende, e agarrando o caido pelos colarinhos perguntou-lhe: «Ouve lá, tu sabes com quem estás a falar?», mas após outra silenciosa resposta e dois tabefes na cara do calado, o inspector Soares apercebeu-se que o individuo já não estava vivo. Imediatamente, via telemóvel, contactou o Intendente Paixão, avisando-o do sucedido.

JOSÉ DA MANHÃ- Mas, ò Marques, quem seguia na rectaguarda não se apercebeu imediatamente do sucedido?

MARQUES GÉMEO- Essa é que foi a grande questão, imediatamente colocada pelo 1º M. Quando se dirigiu ao local via videotelefone. Mas a verdade é que a rectaguarda, por se encontrar em movimento com a vanguarda e na mesma direcção, não olhava para trás, parafraseando o Intendente Paixão.

JOSÉ DA MANHÃ- E as pessoas não sentiam que estavam a pisar outras pessoas?

MARQUES GÉMEO- Essa, José, foi outra das questões colocada, desta vez pelo Presidente, mas segundo um especialista do momento, e que se encontrava ao seu lado, a falta de tacto teria que ver com dois factores:

1- As pessoas estavam, na sua totalidade, calçadas com sapatos baratos, facto que diminui significativamente, na ordem dos quase 100%, a sensibilidade dos pés no contacto com objectos a eles estranhos;
2- O facto de grande parte dos celebrantes ser oriunda da região de onde “Os Bem Amados” estão sediados, e que é uma região extremamente pedregosa, onde mesmo as estradas, por uma questão de enquadramento paisagístico e respeito pela paisagem natural, segundo outro especialista também ao lado do presidente, são construidas com o dito material pedregoso da região, que é, segundo palavras do presidente da junta de freguesia, o material que por não ser é poluente é amigo do ambiente, e a opção mais poupada para um orçamento exemplar. De novo para ti, José.

PEDRO DE ONTEM- Obrigado Marques. E sou o Pedro de Ontem. E segue-se um curto intervalo para compromissos assumidos há já algum tempo por esta antena.

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
AO JANTAR, AO ALMOÇO E AO PEQUENO ALMOÇO, TODOS BEBEM O QUE GOSTAM, PORQUE NÃO ANTES DE LEVANTAR: SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, UM SEGREDO CADA 24 HORAS. DESCONTOS À TARDE PARA OS QUE NÃO PODEM VIR... DE TARDE!

DOROTEIA GÊMEA- Olá, mais uma vez, a emissão prossegue com uma nova tentativa de contacto com o nosso reporter no país obscuro, assim chamado por razões de segurança, Nuno Repetente. Nuno, creio que desta vez já nos ouves?

NUNO REPETENTE- Sim. Mas o volume está muito alto; podes baixa-lo um pouco?

DOROTEIA GÊMEA- Oh! Claro que sim. Desculpa Nuno. Está melhor agora?

NUNO REPETENTE- Sim, está perfeito.

PEDRO DE ONTEM- Então qual é o ponto da situação, neste preciso momento, aí no pais obscuro?

NUNO REPETENTE- Bom, a situação é complicada porque já é noite e não há electricidade; durante os bombardeamentos uma bomba inteligente derrapou, isto segundo fontes seguras, ao fazer uma curva apertada e, sem querer, atingiu o principal posto de abastecimento de energia desta região. Como podem imaginar, as pessoas estão bastante ressentidas, ainda por cima porque hoje estava programado o último episódio da tele-nove-vela “Dialogo de Surdos”, cuja vedeta, e actor principal, é um belíssimo jovem modelo que se apaixonou por uma boneca barbie e passa todo o seu tempo livre na loja onde ela se encontra à venda.

MARQUES GÊMEO- Mas que situção tão tocante, Nuno. E qual é o sentimento que assola as pessoas neste momento de inquietude e ansiedade?

NUNO REPETENTE- Sem dúvida que as principais emoções são o desespero e a incredulidade. Tive a oportunidade, logo após a explosão da bomba, de entrevistar algumas pessoas, e de lhes perguntar qual era a sensação de não ter electricidade para ver o último episódio da tele-nove-vela:

ENTREVISTADA 1- É uma desgraça total. Nem sei se vou conseguir dormir esta noite.

NUNO REPETENTE- Mas, por exemplo, não pensou que se tivesse construido a casa noutra região não teria, agora, este problema?

ENTREVISTADA 1- Tem razão, não tinha pensado nisso.

NUNO REPETENTE- E o senhor, parece-me bastante desolado?

ENTREVISTADO 2- Sim, estou desolado e mal barbeado.

NUNO REPETENTE- Então porquê?

ENTREVISTADO 2- Não há direito de me fazerem isto sem me avisarem.

NUNO REPETENTE- E a senhora, como pensa fazer o jantar?

ENTREVISTADA 3- Felizmente tenho um fogão a gás. Mas isso não me preocupa absolutamente nada. O que me irrita é que se fosse uma bomba estúpida e tivesse caido num hospital onde, por exemplo, estivessem feridos muito graves e sem grandes chances de se curarem eu ainda conseguia perceber e desculpar. Mas no posto de abastecimento de energia... isso é muito grave e atinge os corações da maioria da população no seu ponto mais vulnerável, sensível e precioso.

PEDRO DE ONTEM- E quanto às pessoas que estavam a planear ir de férias; já sabes se continuam a pensar ir ou se vão mudar de ideias, Nuno?

NUNO REPETENTE- Ainda não sei nada, de momento, mas vou tentar averiguar, Pedro.

PEDRO DE ONTEM- Terrível, sem dúvida, ter de dormir às escuras e, ainda por cima, sem poder ver o desfecho do último episódio da tele-nove-vela. No entanto, recebemos uma comunicação de última hora, da estação de televisão do pais obscuro, comunicando que, logo que o abastecimento de energia seja restabelecido não irão passar o último episódio do “Dialogo de Surdos” mas irão repetir todos os outros espisódios novamente. Pois são boas noticias, estas, estimado espectador.

MARQUES GÊMEO- Oh! Que felicidade, creio eu, para essas pessoas sem electricidade. Até quase que choro.

JOSÉ DA MANHÃ- E para nos falar do impacto que a escuridão poderá ter na população do pais obscuro, temos comnosco, aqui no estúdio, a nossa convidada Maria Sou Eu, que é uma especialista em Cegueira Temporária, entre outras coisas que para já não interessam. Muito obrigado Maria, por aceder ao nosso convite, no entanto devo de realçar que é uma convidada paga e que nos remeteu, já, a factura e o respectivo recibo. Tudo em nome da clareza das coisas.

MARIA SOU EU- Oh! José, nem era preciso falar disso. Toda a gente sabe que eu sou honesta e, mais ainda, que pretendo vir a ser governante muito em breve. E aí depois veremos como é que as clarezas serão; é que em democracia as opções são maiores do que numa ditadura, e mais fáceis de justificar; mesmo quando não há justificação possível.

JOSÉ DA MANHÃ- Após esse pequeno aparte, o que eu gostaria de lhe perguntar é quais são, no seu entender, as opções que estas pessoas tem? Isto é, como reagir em casos de escuridão energética, e principalmente à noite?

MARIA SOU EU- Este é, pelo seu contexto obscuro, um caso complicado. Normalmente, quando há um corte de energia, chama-se o piquete de serviço e eles, com a rapidez que lhes é característica, resolvem a situação. Neste caso, a situação é mais complicada. Em primeiro lugar, envolve uma bomba inteligente que precisa ser identificada; em segundo lugar, e segundo as fontes seguras, houve uma derrapagem na curva, o que pressupõe, por exemplo, a existência de oleo derramado, má sinalização aérea, excesso de velocidade, etc. Depois temos a reconstrução do posto de abastecimento de energia, acompanhada pela constatação de todos os danos colaterias e respectivos montantes das idemnizações. Não creio que antes de um ano, pelo menos, seja possível restabelecer o abastecimento de energia na região.

MARQUES GÊMEO- Mas, Maria, isso não será cegueira temporária, que é a tua especialidade, mas sim cegueira total.

MARIA SOU EU- Infelizmente tens razão, Marques Gêmeo. O que é algo que já está para lá das minhas possibilidades profissionais. No entanto, e se acordarmos um pagamento extra, poderei, eventualmente, esticar-me nas minhas competências. Fica ao vosso critério.

DOROTEIA GÊMEA- Sim, é possivel acerdermos ao pagamento extra. E eu gostaria de te perguntar, extraordináriamente, como é que pensas que as pessoas vão lidar com esta situação?

MARIA SOU EU- Em primeiro lugar, creio que só com grande espírito de sacrificio é que as pessoas poderão enfrentar esta situação. Nomeadamente, usando o gás, petróleo, fósforos, pilhas, madeira, enfim, todas as alternativas que puderem. Eu, por exemplo, recentemente tive um problema similar com um corte no abastecimento de água durante um fim-de-semana. Como é que eu enfrentei a situação? Muito simples: fiz a mala, meti-a no carro, dirigi-me ao aeroporto e fui passar o fim-de-semana a Londres. Devo de confessar que foi um pouco doloroso porque o tempo em Londres estava terrivelmente chuvoso, no entanto superei esta dificuldade com um sorriso nos lábios, uns cocktails, um pé de dança e algum sexo que encontrei nos saldos.

DOROTEIA GÊMEA- E qual é o teu conselho para as pessoas do pais obscuro?

MARIA SOU EU- Honestamente, o meu conselho é o de que mudem de nacionalidade: há tantas outras, e não há nada como tentar.

PEDRO DE ONTEM- Mais uma vez, obrigado Maria Sou Eu, especialista em Cegueira Temporária, e Total por vezes. Vamos fazer um curto intervalo para compromissos comerciais.

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
AO ALMOÇO, AO JANTAR E AO PEQUENO ALMOÇO, TODOS FUMAM O QUE FUMAM, PORQUE NÃO ÀS ESCURAS. SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, ONDE O FUMO NÃO SE VÊ SEM FOGO. DESCONTOS ARDENTES PARA OS BOMBEIROS... SE VIEREM EM SERVIÇO!

MARQUES GÊMEO- Benvindos, senhores e senhoras telespectadores. Temos uma notícia de última hora no desporto. Consumou-se, após imensas horas de penosas deambulações, a tranferência mais cara da história do futebol. Em directo de lá temos...

REPORTER DE LÃ- Alô pessoal, já posso falar?

MARQUES GÉMEO- Não, ainda não. E agora vamos para um directo de... com o João Já Sabem e as últimas sobre esta incrível transferência.

JOÃO JÁ SABEM- Olá telespectadores desportivos, aqui do local para onde a tranferência se efectuou devo afirmar que o estado de ânimo geral é, mais do que euforia, cansaço. E outra coisa não seria de esperar após a tranferência, manual, de mais de cem mil cadeiras do estádio velho para o estado novo, numa distância de mais de 100 quilometros; sendo que todos foram percorridos a pé. A tranferência demorou quase 12 meses e foi concretizada pelos jogadores da equipa. Estes, abdicaram de jogar para o campeonato mas não abdicaram dos seu salários, nem dos hipotéticos prémios a que teriam direito. E temos uma reportagem, já preparada e editada sobre as principais peripécias que ocorreram ao longo do percurso.

E veêm-se adolescentes, equipados, a passarem do lado esquerdo do palco para o lado direito, carregando uma cadeira cada um, recebendo o apoio dos transeuntes -como se fossem ciclistas. A cena decorre durante uns 3 minutos.

JOÃO JÁ SABEM- Como podem constatar, mais do que amor à camisola, o amor às cadeiras é, digamos, quase excessivo. Uma paixão em nome do desporto sentado. De volta a ti Marques Gêmeo.

MARQUES GÊMEO- Muito obrigado Já Sabem. A emissão prossegue contigo, Pedro.

PEDRO DE ONTEM- Caros telespectadores, já alguma vez pensaram como é possível transformar um sonho de uma criança na mais pura realidade. Pois claro que já, não é? Pois a próxima reportagem que lhe vamos mostrar, e que, aconselhamos sem proibirmos, não deve de ser televisionada por pessoas com dívidas por uso excessivo de cartões de crédito, é bem demonstrativa dessa realidade rara nos dias de hoje. A nossa repórter Carla Já Sabiam, levantou-se bem cedo e preparou-nos esta belíssima peça.

CARLA JÁ SABIAM- Muito bom dia senhores telespectadores, estamos em casa de uma senhora anónima, que apenas aceitou mostrar uma fotografia tipo-passe para a nossa camera, e cujo marido, que também quis permanecer no anonimato tipo-passe, se encontra preso por se ter endividado excessivamente com uma dúzia de cartões de crédito. A história começou hà alguns anos atrás, não eram ainda casados, não é senhora Antónia?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, não.

CARLA JÁ SABIAM- E a senhora Antónia ainda era virgem?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, era.

CARLA JÁ SABIAM- Foi quando o seu marido a convidou para o baile da praia dos pescadores?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, foi.

CARLA JÁ SABIAM- A senhora Antónia ainda se lembra do que levava vestido?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, um vestido preto.

CARLA JÁ SABIAM- E depois, o que é que se passou?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, passava já da meia-noite.

CARLA JÁ SABIAM- E foi quando decidiram fazer o menino João?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, foi.

CARLA JÁ SABIAM- Entretanto tiveram que casar muito rápidamente; nem tiveram tempo de convidar convidados?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, não.

CARLA JÁ SABIAM- Ao fim de quanto tempo nasceu o João?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, ao fim do tempo.

CARLA JÁ SABIAM- Mas a senhora Antónia não sabia, ainda, que era o João que iria nascer?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, não.

CARLA JÁ SABIAM- Entretanto o João cresceu e no seu terceiro aniversário pediu ao Pai o quê?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, pediu.

CARLA JÁ SABIAM- Pediu ao pai que gostaria que ele fosse preso, não foi?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, gostaria muito.

JOSÉ DA MANHÃ- Temos de interromper esta belíssima reportagem da Carla Já Sabiam para um pequeno intervalo comercial. Voltamos já.

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
AO AR LIVRE, NA CIDADE E NA PRAIA, NO HOSPITAL E NA PADARIA, TODOS PODEM TER AS FÉRIAS COM QUE SONHAM, PORQUE NÃO VOCÊ. SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, ONDE O CRÉDITO NÃO SE FECHA NEM SE ABRE: ACREDITA-SE. DESCONTOS PARA TODOS? NÃO, SÓ PARA SI... SIM, PARA SI QUE É PAI HÁ MENOS DE 5 ANOS!

JOSÉ DA MANHÃ- Retomamos a emissão onde ela tinha terminado, com a Carla Já Sabiam; que já não está na cama com o ministro, mas que está com a dona Antónia, na sala de estar.

CARLA JÁ SABIAM- E o que é que o seu marido respondeu?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, respondeu que sim.

CARLA JÁ SABIAM- E a dona Antónia concordou?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, concordou.

CARLA JÁ SABIAM- Porquê?

SENHORA ANTÓNIA- É sim, minha senhora. Quero dizer, porque sim.

CARLA JÁ SABIAM- E esta, senhores tele-ouvintes, é a realidade de um sonho de uma criança no seu terceiro aniversário. De salientar que, durante o julgamento por uso e abuso de cartões de crédito, o pai anónimo disse ao juiz que não sabia que tinha que pagar o crédito pois pensava que estava a participar numa brincadeira, e que estavam todos a brincar: até os senhores das lojas; até o seu filho quando lhe pediu para que fosse para a prisão.
E foi a reportagem de um momento especial, que só alguns podem vangloriar-se de terem vivido. Eu sou a Carla Já Sabiam, na sala de estar da casa da dona Antónia.

MARQUES GÊMEO- Oh! Quem me dera ter sido eu o escolhido para esta reportagem tão pungente. Oh! Mais uma vez fui preterido.

DOROTEIA GÊMEA- Temos uma notícia de última hora do nosso Enviado à Espera, sobre os terríveis acontecimentos da Quadra do Natal.

ENVIADO À ESPERA- Olá, mais uma vez. É com um grande orgulho que transmito para todo o mundo que a chuva parou de cair. Esta, devo dizer, é uma noticia exclusiva para o nosso canal.

DOROTEIA GÊMEA- Então isso quer dizer que nós somos os únicos a fazer a cobertura, em directo, deste importante evento, à Espera?

ENVIADO À ESPERA- Sim, Doroteia. Nós fomos os únicos que, teimosamente, e por ordens da redação, permanecemos atentos, debaixo desta chuva torrencial, ao desanuviar das nuvens. As outras cadeias de televisão foram, entretanto e por ser noite escura, repousar para o hotel. Bom, não sabem o exclusivo que perderam e pedem-me, agora, para usarem as nossas imagens para os seus noticiários principais. Doroteia.

DOROTEIA GÊMEA- Obrigado à Espera, vamos para uma curta audiometria. Até já.

2 TELEFONISTAS COM AURICULARES ENTRAM EM CENA, DE MÃOS DADAS, ACOMPANHADOS PELOS ENTREVISTADOS

TELEFONISTA 1- Senhor Pedro, daqui fala o audiometro.

SENHOR PEDRO- Fala o quê?

TELEFONISTA 1- O audiometro. É só para lhe perguntar que programas de televisão é que o senhor Pedro não vê quando chove?

SENHOR PEDRO- Mas está a referir-se ao período de inverno ou de verão?

TELEFONISTA 1- Olhe, esqueça. Está bem?

SENHOR PEDRO- Está bem, obrigado.

TELEFONISTA 2- Está sim, senhor José?

SENHOR JOSÉ- Sim, estou.

TELEFONISTA 2- Daqui fala o audiometro. Posso perguntar-lhe se costuma ver televisão quando chove?

SENHOR JOSÉ- Mas está a perguntar-me sobre quando estou na rua ou em casa?

TELEFONISTA 2- Não, só quando está a chover.

SENHOR JOSÉ- Depende... Se estiver no café e estiver a dar a novela, aproveito para beber mais um copito e vejo. Quando estou na rua nunca vejo televisão. Quero dizer... como PODERIA? Mas quando estou em casa, se não estiver a dormir, não importa que faça chuva ou que faça sol, vejo televisão com muita frequência sim senhor.

TELEFONISTA 2- Muito obrigado, senhor José.

SENHOR JOSÉ- Ora essa. Mas olhe lá, você vê ou não vê televisão quando está a chover?

MARQUES GÊMEO- Oh! Que saudades do tempo em que eu fazia audiometria... E, já a seguir, as últimas do desporto, aqui, de mim para si. Quanto à nossa notícia de abertura do desporto, os festejos no clube “Os Bem Amados”, parece que acabaram. Se houver mais desenvolvimentos daremos deles conta. E quanto à mais cara transferência do futebol: mais de 100 mil cadeiras em doze meses, podemos, desde já, comunicar-lhes que já é história, isto porque houve outra ainda mais dispendiosa. O nosso reporter João Já Sabem esteve lá.

JOÃO JÁ SABEM- Olá, outra vez, telespectadores desportivos, aqui do local para onde a tranferência se efectuou devo afirmar que o estado de ânimo geral é, mais do que euforia, desolação. E outra coisa não seria de esperar após a tranferência, também ela manual, de mais de cem mil cadeiras do estádio velho para o estado novo, mais concretamente 100 mil e 90 cadeiras, numa distância de quase 100 quilometros; sendo que todos foram percorridos a pé. A tranferência que estava prevista para demorar quase 12 meses, e que foi concretizada pelos jogadores da equipa que abdicaram de jogar para o campeonato mas não abdicaram dos seu salários, nem dos hipotéticos prémios a que teriam direito, demorou quase o dobro, mais precisamente 23 meses e dez dias, e foi a mais cara tranferência de sempre, superando a última em quase o dobro do custo. Entretanto falei com o presidente e perguntei-lhe o porquê de tão cara transferência. Senhor presidente, diga lá, então.

REPORTER DE LÃ- Alô...

JOÃO JÁ SABEM- Não... ainda não és tu. Senhor presidente, por favor.

SENHOR PRESIDENTE- Bom, é com uma grande satisfação que posso confirmar-lhe que o nosso clube pagou, pela transferência, a mais alta quantia até hoje paga no mundo do desporto.

JOÃO JÁ SABEM- Sim, já todos sabemos. Mas porquê?

SENHOR PRESIDENTE- Bom, devo confessar-lhe que não estavamos a pensar gastar tanto dinheiro e tanto tempo, mas quando a tranferência de cerca de 100 mil cadeiras se concretizou verificou-se que não havia lugar para as restantes noventa, conforme estava no projecto... Bom, pôs-se o problema aos sócios se eles queriam um estádio novo só com 100 mil cadeiras, ou um estádio velho com cem mil e 90 cadeiras. A decisão, que nós apoiavamos também e publicamente, era a de manter as noventa cadeiras no estádio velho e retransferir, novamente, as restantes cem mil do novo para o velho estádio.

E veêm-se adolescentes, com um equipamento já muito usado, a passarem do lado direito do palco para o lado esquerdo, carregando uma cadeira cada um, recebendo o apoio dos transeuntes (como se fossem ciclistas). A cena decorre durante uns 3 minutos.

JOÃO JÁ SABEM- E esta é a notícia do dia no desporto. Marques, passo a bola para ti.

MARQUES GÊMEO- Oh! Obrigado João Já Sabem. Como eu gosto de ti quando me falas em bolas. Margarida Gêmea.

MARGARIDA GÊMEA- E uma estranha notícia sobre turismo acabou de chegar à nossa redação. Têm a ver com os mais de quatro mil passaportes desaparecidos no pais Obscuro durante o ano que passou. Quando instamos o governo sobre este acontecimento pouco normal foi-nos transmitido e passo a citar: «O momento é inoportuno para discutir o assunto, por estar em curso um processo para os reaver, assim como de reavaliação da necessidade de Vistas Grossas para os Obscurecidos poderem entrar nos Estados Gerais. E consideramos, também, uma falta de sentido único de Estado, de embriaguez claro, trazer agora a debate este problema de dois sentidos: o que vai daqui para lá e o que vem de...

REPORTER DE LÃ- Alô!... Já posso falar?

MARARIDA GÊMEA- Não, meu querido reporter de Lã, ainda não. A emissão prossegue contigo, Pedro.

PEDRO DE ONTEM- Obrigado Margarida, eu sou o Pedro de Ontem. E está na hora de mais um pequeníssimo, e curto, intervalo. Até já.

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
AO VER PASSAR UMA ANDORINHA, NÃO A CONFUNDA COM UM POMBO-CORREIO! MAS SE O FIZER, NÃO SE PREOCUPE MUITO E VENHA ATÉ NÓS: SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, ONDE O QUE PARECE NÃO É, MAS PODIA TER SIDO SEM DÚVIDA. DESCONTOS OPCIONAIS PARA TODOS OS GASTOS... AO NOSSO GOSTO!

JOSÉ DA MANHÃ- Passam vinte minutos das 14 horas e, como habitualmente, vamos ter a rubrica “Esta é a Minha Opinião Final” pela boca do nosso Correspondente Opinioso. Desta vez o enfoque será sobre o brilhantismo dos políticos em tempo de arranjar emprego, quero dizer, campanha eleitoral.

CORRESPONDENTE OPINIOSO- Ela chorava naquele momento de verdadeira e pura inquietude. Sim, podia-se constatar que o coração tinha tomado o controlo sobre a razão. Mas nem todos choravam, naquela almoçarada de chorar por mais. Alguns havia que, se comiam era por que tinham fome, outros, se não comiam era porque já tinham comido. E era quente o ambiente de camaradagem, e a importância do mesmo era atestada pela diversidade dos fatos, das gravatas, pelo brilho dos sapatos, pelos surpreendentes penteados e pelos vários pesos-mortos-presentes; creio que antes do almoço pesavam menos. O povo, claro, só foi convocado no final para a limpeza, bem como no dia das eleições para ficarem por casa ou, no máximo, dentro dos seus carros importados numa das muitas filas à escolha para rodagem de pneus recauchutados, o que é um seu direito democrático, mas sem direito a subsidio de voto, tão pouco pequeno-almoço, almoço, ou jantar. Quanto ao processo de votação, os politicos obscuros já estão quase profissionais e quase que o conseguem fazer sozinhos: ora voto eu, ora votas tu, ora governo eu, ora governas tu. Nos conformes mais conformes com a democracia para a escolha dos lideres que nos guiarão em direção ao futuro: que, como sempre, nunca é previsível, nem à priori, nem à posteriori, tendo em conta os vários vectores e pessoas envolvidos. E ainda não se conhece nenhuma empresa especializada em sondagens eficazes no obscuro mercado incerto.
Mas a primeira grande nota de rodapé, prende-se, sem dúvida, com a clarificação da politica, reflexo da sua maturidade: já não é possivel, ou muito raramente, misturar o povo com os politicos, principalmente em jantaradas e almoçaradas, ou em negócios e negociatas. Os nosso politicos, cada vez mais iluminados, misturam-se, agora, com outros políticos, dependendo dos convites de ocasião. Misturam-se também, e cada vez mais, com empresários de sucesso ou em vias disso, jogam à bola nos entretantos mas com muitos cortes à mão, misturam-se com amigos ligados ao sector público e que lhes fazem, de quando em vez, o ponto de situação sobre a evolução económica do mesmo, o número de assessores recentemente contratados, a termo e a pagamento incertos, e carros adquiridos em nome do pretigio e da rapidez, assim como acabam por serem informados de por quanto tempo mais poderão ser indispensáveis. Não será, pois, exagerado da minha parte dizer que as amizades e os contactos que os politicos mantem com determinados itens na sociedade Obscurense sejam reprováveis. Antes pelo contrário, são irreprováveis e vistosos, e copiados internacionalmente como um exemplo...

DOROTEIA GÊMEA- Pedimos desculpa pela interrupção, mas temos de interromper esta peça para uma noticia de última hora. Estamos somente a aguardar que as imagens sejam editadas manualmente para as pormos no ar para todo o planeta. Entretanto, podemos avançar que a noticia se prende com a vinda do filho do primeiro ministro dos Obscuros Estados Generais e que afirmou, aos nossos microfones, qualquer coisa que estamos a tentar traduzir; ela fala uma lingua que não é a Obscura Nacional, isto, porque estudou noutro pais. Era muito inteligente segundo o pai, quero dizer, o 1º M. E, segundo outras fontes seguras, mais do que o próprio pai: será caso para dizer que filho de truta não é salmão. Bom, aguardamos pelas imagens a qualquer momento... Creio que... está quase... só mais uns segundos. Ah! Dizem-me que não foi possível traduzir as afirmações do filho. E parece que nem o pai as percebe. Pois fica sem efeito esta noticia. Voltamos, então, à excelente peça do Correspondente Opinioso.

CORRESPONDENTE OPINIOSO- ...a não seguir por politicos de fraca personalidade. “Esta é a Minha Opinião Final” e eu sou o Correspondente Opinioso.

PEDRO DE ONTEM- A rubrica “Esta é a Minha Opinião Final” estará de volta aos vinte depois das 5. Entretanto vamos para um boletim meteorológico com a Sandra Bom Vento. Sandra, como é que estamos de previsões para hoje.

SANDRA BOM TEMPO- Olá Pedro, hoje, tal como ontem, as previsões do Instituto de Sondagens Obscurecido são de uma variação que varia entre os 50 a 51% de bom ou de mau tempo. As imagens de satélite não são muito clarificadoras, principalmente as que foram tiradas de madrugada: não foi possivel ver o sol até ao alvorecer, do lado nascente. Durante o dia, e em partes do território foi possível para algumas pessoas tomarem banhos de sol, enquanto outras tiveram de contentar-se com banhos de chuveiro. A temperatura vai arrefecer ao longo da noite, atingingo o seu ponto mais baixo nos congeladores e arcas frigoríficas espalhadas um pouco por todo o pais. E é tudo por agora Pedro.

PEDRO DE ONTEM- Obrigado, Sandra Bom Tempo. Esperemos que não chova. Vamos, já que o tempo está incerto, para uma noticia mais acertada. Falo-vos da Cultura Obscura, de que tanto se fala mas que tão pouco se vê: não que não exista mas porque os seus principais entes criadores gostam de se manter à margem dos holofotes; cinema, música, circo, teatro e televisão excluidos, claro, e cirurgia dentaria também. Mas nós quisemos fazer um balanço e fomos por esse pais obscurecido fora e o que encontramos é o que lhe mostramos já a seguir. O Nuno Repetente conta-nos as histórias, neste belíssimo documentário realizado pelo realizador Pedro Também de Cá.

NUNO REPETENTE- Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe. Este é um celebre ditado popular que nos pode dizer muito dependendo de por onde começarmos: se pelo mal, se pelo bem. Mas comecemos pela Cultura Obscura, esse milagre da multiplicação e da variedade que escorre, ora das encostas para o mar, ora do mar para as nuvens, ora das nuvens para as encostas e para o mar. Sim, esse trabalho laborioso e inquieto que não escolhe momentos nem localidades para se auto-afirmar, para se dar a conhecer, para se mostrar, enfim, para servir-se em delicioso ritual autofágico... e autográfico, mas sem ser móvel. Tempos modernos! Decidimos, como não podia deixar de ser, começar pelo local com a maior concentração capital de artistas do espectaculo de variedades: A Sembleia da Pública. Com concertos, diáriamente de manhã até à noite, de canto Laborial na sua maior vertente. Poderemos, por vezes, assistir a outras variações do fertilíssimo mundo do espectaculo tais como trapezismo, malabarismos, poço da morte e balete de matraquilhos; sem desprezo pelos profissionais, podemos afirmar que o nível é, senão igual, por vezes, superior. E, fontes seguras, disseram-nos que o segredo é a forma desinteressada como se entregam ao seu oficio; parece que quanto menos se pensar no assunto melhor as coisas correm porque não há tanto stresse. E descobrimos outro segredo, que tem que ver com as supertições: antes de iniciarem as suas demonstrações artísticas os artistas dizem, baixinho quase entre dentes «Seja o que Deus quiser». Tal demonstração de fé levou-nos a fazer uma pausa em casa do Bispo e perguntar-lhe o que ele pensava de tal acto de profissão, ao que ele nos replicou: «Deus não se mete em politica. Perante Deus todos são iguais mesmo que estejam filiados em partidos diferentes; ou sendo de diferentes sexos, ou tendo contas noutros bancos, ou sejam do leste ou do oeste. Deus não promete, cumpre. Essa é a sua missão. Essa é a sua grandiosidade.» Seguimos, de seguida, para o palácio de S. Vento, residência secular onde se produz algum do melhor artesanato popular, vendido pelas feiras do litoral e do interior em quantidades tão anormais que não sobra, sequer, uma amostra para exportar para esses outros paises que o procuram ávidamente. E tanto assim é verdade que mesmo que quisessemos não poderiamos mostrar imagem alguma que o comprovasse: estava esgotado e com uma grande lista de encomendas em espera. As fontes seguras habituais, disseram-nos, no entanto, que há muita gente que gostaria de trabalhar lá mas que já não há espaço para mais. Mas que de vez em quando lá são metidos por outros palácios periféricos, onde trabalham clandestinamente, e/ou em condições gritantes que nem quereriamos saber. Quisemos, é verdade, mas pouco soubemos para além de que não recebem, de ordenado e outras regalias, o que realmente merecem. Coitados!

DOROTEIA GÊMEA- Um curto intervalo para descanso do actor, que é o que falou mais longamente. Ele começa já a falar de novo; ainda a missa não vai no adro.

NUNO REPETENTE- Obrigado, Doroteia. E somente com o movimento dos lábios diz: AMO-TE!

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
QUANDO QUER E NÃO SABE O QUÊ, O QUE É QUE FAZ? NÃO, NÃO PENSE. NÃO, TAMBÉM NÃO VÁ DORMIR. FAZER O QUÊ, ENTÃO? VIR ATÉ NÓS: SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, ONDE VOCÊ ENCONTRA O QUE PRECISA... MESMO QUANDO NÃO PRECISA! DESCONTOS? SE FOREM PRECISOS, OU POR AMOR.

DOROTEIA GÊMEA- Nuno, podes continuar com o teu documentário.

NUNO REPETENTE- Subimos, por alguns momentos, até chegarmos a Além, onde fomos brindados com uma exposição de bordados de Lã...

REPORTER DE LÃ- Alô, pessoal, quer queiram, quer não agora é que eu vou falar. Todo o mundo dançando comigo.
E começa a cantar em estilo rap:
«Eu queria ser uma camisola de seda mas não pude, pudera, pudera, minha mãe não era louca p´ra me dar seda, seda, seda. Deu-me o quê? Deu-me o quê? Deu-me lambada, deu-me cacetada, deu-me batucada, deu-me juizo, deu-me bofetada. Meus amigos e minhas amigas estranharam a mudança e perguntaram: cadê o seu cool?, cadê o seu ganga?, cadê a sua seda? Cadê o seu pai? Cadê? Cadê? Cadê? Cadê? Cadê? Cadê? Até já, pessoal. Bora, caipirada p´ra xuxu... xuxu...xuxar.

NUNO REPETENTE- ...alguns xailes para enxaquecas, diversos lenços de assoar em ponto cruz, muitas fraldas de linho crú e de algodão em rama, um par de confessionários em pau santo e uma nora de origem lusa. Tudo em estado de conservação impecável, que, segundo os técnicos, se deve, em boa parte, ao seu constante uso. Os técncicos cofessaram-nos que quanto menos uso maior a detioração, dando como exemplos paradigmático as casas abandonadas, as camas dos hospitais, etc.
E, caros telespectadores, ficaram, para já, com uma belíssima ideia da cultura que por cá se faz. Estivemos no sul, no norte e passamos pelo centro deste pais obscuro. No próximo programa vamos até ao interior, onde as surpresas são mais do que as esperadas. E para abrir o apetite: a caríssima arquitectura dos matadouros inexistentes; o milagre dos sacos azuis; as antas desterradas; as águias depenadas, os leões carecas e o pai e filho em quadrados separados.

MARQUES GÊMEO- Oh! Que cultura, que assombro de cultura. Até o meu mundo desportivo se envergonha com tantos artistas fora dos relvados; nem quero imaginar o que eles farão com uma bola, ou com duas. E do desporto é tudo por enquanto. A emissão é tua, sua ranhosa.

DOROTEIA GÊMEA- Obrigado Marques. Tu também és um bom ranhoso. Pedro.

PEDRO DE ONTEM- Ah! Estás a falar comigo Gêmea?

DOROTEIA GÊMEA- Não, estava a falar com ele.

PEDRO DE ONTEM- E como estamos todos embúidos de cultura, a próxima noticia prende-se, senão com ela, com uma forma muito criativa, para não dizer artística, de tentar ingressar no exigente mundo da politica. É a apresentação de candidatura de um candidato qualquer. O João Já Sabem esteve lá.

REPORTER DE LÃ- Agora não, cara, tou transando. Mais tarde.

JOÃO JÁ SABEM- Transar assim, com esse sol. Põe a camisa senão pode queimar a pele.
Bom, Pedro, estivemos na apresentação da candidatura da Cândida Atura, filha do senhor José Aturou A. e da senhora Cândidinha Aturava, ambos naturais de parte incerta, mas presentes, ao lado direito da filha, enquanto do lado esquerdo estava o marido, o Eng. Campos da Costa. Foi uma apresentação muito simples na sua ingenuidade, mas eficaz e clara na sua mensagem ao povo Obscurecido. Aqui está a reportagem.

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
MANIFESTO POLITICO PARA A CANDIDA ATURA AO CARGO MÁXIMO DA POLÍTICA: PRESENTEAR O/A DES...NO GOVERNO

(estão todos de pé, vestidos de uma forma muito formal e e obscura)

CANDIDA ATURA- Venho por este meio apresentar a minha candidatura, porque:

estou desempregada
não tenho casa
estou desorientada
não tenho dinheiro
estou solteira
não acredito no futuro
estou cansada
não me importo com a corrupção
estou cheia de amigas a quem quero dar emprego...

...Interrompo-me, para salientar que a medida anterior, a última, será a primeira que implementarei. No caso de ser eleita é claro, porque está na hora de RENACIONALIZAR a questão. Continuando:

não pretendo mudar a balbúrdia
estou consciente disso e demais
não confio em ninguém
estou desconfiada
não brinco em serviço
estou de licença de parto
não sou a favor da desconcentração
estou muito atenta e a par das politicas nacionais, e mais ainda das internacionais...
...E volto, de novo, a interromper-me para salientar a penúltima medida do segundo grupo, que passo a explicar: pretendo concentrar num só cargo, por motivos de poupança evidentes - e esta será a minha segunda medida se for eleita - os cargos de 1º M (primeiro ministro, óbviamente), P. da R. (presidente da república, claro) e O-. (posição-e qual). Não vejo qualquer contra-indicação e/ou efeitos secundários a não ser a já supra-citada “POUPANÇA”, que investirei, sem qualquer concurso público pachorrento e anti-lucrativo, em certificados de forro para revestir os “casacos dos rapazes” namorados das minhas amigas, que tanto frio apanham em viagens pela-e-fora da nação. Continuando:

duvido que não irei perder com minoria
estou convicta de que irei ganhar com maioria absoluta
não quero que me iludam
estou desiludida
estou ausente porque
estou farta destes merdosos
que só nos dão miséria e
destruição com foros de
requintada malvadez
e comparo-os a esses muitos
criminosos de guerra à solta e
nomeio-os na minha candidatura como
apoiantes indefectíveis
da mesma que será assim
garantidamente
a vencedora

A LISTA ON: todos os Barões, Biscas, Damas e Valetes e quem mais se me quiser juntar, incluindo Boys & Girls.

A LISTA OFF: todos os que forem contra mim.

A LISTA MISTA: inclui os 5 sexos: feminino, masculino, homossexual, lésbico e o que não se importa –
todos os pintores, escultores, cantores, músicos, compositores, actores, intelectuais, escritores, filósofos, professores, padres, que não sejam profissionais, ou que estejam desempregados.
Remeto-me, agora, ao silêncio total até ao dia em que celebraremos, eu e todo o povo obscurecido, a vitória do projecto: “As promessas devem ser silenciosas, as obras também”. Muito obrigado a todos.

JOÃO JÁ SABEM- E esta foi, sem dúvidas quase, uma das mais originais e sincera, para não dizer naif, apresentação de uma candidatura política. De referir, por último, que a Dona Cândida Atura é doméstica desempregada, em conformidade com a declaração de rendimentos solteira que apresentou nas finanças Obscuras. E a presença do marido não foi oficial, foi como amigo... do pai. Pedro.

PEDRO DE ONTEM- Obrigado João Já Sabem. Vamos para mais um pequeno intercalar comercial.

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
QUANDO UMA CANDIDATURA SE CANDIDATA POR MAIS QUE QUEIRA NÃO PODE CANDIDATAR-SE SEM O APOIO TOTAL DOS FORNECEDORES E INTERMEDIÁRIOS COMO NÓS: SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, ONDE VOCÊ JÁ VOTOU, JÁ GOVERNOU, JÁ COMPROU, JÁ CANDIDA ATOU. OFERTA ESPECIAL DE VOTOS EM BRANCO POR CADA NÓ ATADO

JOSÉ DA MANHÃ- São 14 hora e 43 minutos, tempo de dar uma vista de olhos, quero dizer, uma piscadela pela concorrência. Entre ela temos a da sagrada irmandade, outra que parece que anda com uma doença na sua versão inglesa, e, por último, a pioneira na rádio e na televisão. E é sobre esta que vamos re-focar as nossas atenções. O Cândido e a Piedade disfarçaram-se de anjinhos e, com a cumplicidade d’Alguém de lá...

REPORTER DE LÃ- Ainda não, cara...

JOSÉ DA MANHÃ-... de dentro.

CÂNDIDO- Piedade, tem cuidado para não sermos apanhados com a boca no microfone.

PIEDADE- Qual, o deles ou o teu?

CÂNDIDO- O meu, caramba.

ALGUÉM- Vamos começar pelo departamento do pessoal, que é onde há mais (intencional) gente a mais. Já várias vezes se tentou reduzir este departamento mas, a verdade é que aumentou não só o pessoal como as despesas. Um dos pontos fulcrais, apontado num estudo realizado por uns amigalhaços da nossa estação, é o do sub-aproveitamento , e desconhecimento total, das potencialidades dos profissionais, assim como deve de ser auferida a sua produtividade tendo em vista um ajustamento para níveis humanamente aceitáveis, de forma a não sobrecarregar, nem a carga horária normal nem a carga horária extraordinária para além da lei. Neste ponto primeiro nunca houve consenso. Passemos agora ao departamento comercial. Aqui, como podem ver, o ânimo está muito em baixo; há uns anos atrás tudo era deles, agora? Nada se transforma, nada se recicla, nada se faz. Ao lado, como podem ver, outro departamento gêmeo, o financeiro, mesmo ao lado do Make Up, o problema, desde muito cedo, foi a rivalidade entre os seus dois directores gerais: o Eng. Deve e Dr. A. Ver. Sempre andaram muito separados, aliás, nunca se viu o Dr. A. Ver por cá, enquanto o Eng. Deve... ou devia de aparecer por cá quase todos os dias se a memória não me falha, ou dia sim dia não.

PIEDADE- Então onde é que se metia o Dr. A. Ver?

ALGUÉM- Parece que estava afectado por uma doença crónica; os médicos nunca se entenderam sobre uma hipotética cura. E ficava por casa, a maior parte do tempo. Coitado! Vi-o um par de vezes, mas sempre com óculos de sol, luvas e guarda-chuva. Tinha um aspecto muito triste, é verdade.

CÂNDIDO- Coitado é de mim, se não começamos a falar mais baixo. Vá lá, vamos para o gabinete do presidente.

ALGUÉM- Aqui, e podemos estar à vontade porque o presidente não está por cá, é o centro nevrálgico da casa. Aqui dever-se-ia tomar conta, digamos assim de uma forma metafórica, da criança, mas o caso é que os vários presidentes que por aqui se sentaram, e passearam, nunca tiveram espirito de ama: limitavam-se a assumir, digamos assim de uma forma metafórica, a paternidade da criança de que não eram pais e por quem não sentiam afinidade alguma. O verdadeiro pai, digamos assim de uma forma metafórica, era quem, no quarto da mãe, controlava o crescimento, digamos assim de uma forma metafórica, da criança e se encarregava das diversas injecções de fortificantes, digamos assim de uma forma metafórica. Neste longo e penoso processo de crescimento, digamos assim de uma forma metafórica, descuidou-se completamente a educação em geral, e a moral em particular, o que deu origem a uma criança sem futuro no futuro, digamos assim de uma forma metafórica.

PIEDADE- Ai! Coitadinha da criancinha. Até me arrepio toda só de pensar, digamos assim de uma forma metafórica.

CÂNDIDO- E eu sinto-me com vontade de a adoptar, digamos assim de uma forma metafórica.

ALGUÉM- Na minha opinião devia-se tranformar isto num museu permanente e inter-activo, em que os funcionários fariam de conta que estavam a trabalhar, e a população obscura, mediante a compra de um bilhete pré-comprado, poderia ver in loco a correria louca que é fazer televisão para um público que não a quer ver, e suas consequentes dores de cabeça. Que não se pense que isto é um mar de rosas: fazer televisão é muito duro; levantar cedo, quase nunca deitar, andar de uma câmara para a outra, de um realizador para uma realizadora, de uma anotadora para um electricista. Que o diga a Zézinha que andou ai com alguns dos marceneiros, pintores, varredores e seguradores de microfone. Ela é que a (ou sem o a) sabe bem.

ZÉZINHA- Bom, é assim, quando me dava aquela tontura na cabeça, eu começava a ficar toda molhada: transpirava principalmente nas partes decorosas (ou abertas) e debaixo dos braços. E se havia algum homem por perto eu só tinha tempo de me agarrar a ele. E então tudo parecia crescer dentro de mim. Crescia-me uma ansiedade, cresciam-me uns gemidos e uns calores que parecia que eu ia desmaiar. Mas era sempre uma questão de um minuto, minuto e meio, até tudo voltar ao normal. Eu sempre me queixei do ar condicionado, mas nunca nenhum dos chefes me ouviu; só os meus colegas mais chegados. Até me diziam eles «Por este andar ainda vais parar à maternidade», diziam assim de uma forma metafórica, mas o que eles queriam dizer era ir parar ao hospital. Pois pensei nisso muitas vezes, sim senhor. E sabe que mais...

JOSÉ DA MANHÃ- Pedimos desculpa, mas temos de interromper esta reportagem e, a pedido da Mais Alta Atura a Idade para as Comunicações Visuais Onduladas, pedir desculpas à televisão concorrente visada que se queixou de nós.

PEDIDO DE- Desculpa!

JOSÉ DA MANHÃ- E a nossa programação segue como programado. De mim para ti, esta flor, Doroteia Gêmea.

DOROTEIA GÊMEA- És tão querido. E às tantas, Da Manhã, eu retribuo-te. Mas o tempo é de publicidade, logo seguido de uma audiometria. Até já, queridos... e queridas.

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
QUANDO DE MANHÃ O NEVOEIRO SE LEVANTA É POSSIVEL VER O SOL E, COM ELE, QUEM ENTRA E QUEM SAI DE CASA DE QUEM. E PARA NÃO SAIR DO SEU LUGAR E VISUALIZAR TUDO AO PORMENOR VENHA AOS: SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, ONDE VER PARA CRER É A NOSSA ARTE. MAS VER O QUE NÃO SE DEVE NÃO SE DEVE MAS VÊ-SE COM AS NOSSAS CORTINAS TELEVISIVAS: A CORES OU EM BRANCO

2 TELEFONISTAS COM AURICULARES ENTRAM EM CENA ACOMPANHADOS PELOS ENTREVISTADOS(DE BRAÇO DADO, OU PELA MÃO?)

TELEFONISTA 1- Senhora Ana, daqui fala o audiometro.

SENHOR PEDRO- Fala quem?

TELEFONISTA 1- O audiometro. É só para lhe perguntar o que pensa sobre o problema da dona Zézinha?

SENHORA ANA- Mas a dona Josefa já morreu há quase dois anos.

TELEFONISTA 1- Não é essa, é a que esteve na televisão; na reportagem do Cândido, da Piedade e com o Alguém, também.

SENHORA ANA- Olhe, meu caro, não sei do que está a falar. Bom dia.

TELEFONISTA 2- Está sim, senhora Maria?

SENHORA MARIA- Sim, quem fala?

TELEFONISTA 2- Daqui fala o audiometro. Posso perguntar-lhe se costuma ver televisão sentada, na cama ou em pé?

SENHORA MARIA- Oh! Meu querido, eu não vejo televisão, sou cega. Mas costumo ouvir a rádio no rádio que o meu filho me deu. Quer saber alguma coisa de lá?

TELEFONISTA 2- Não, dona Maria. Muito Obrigado.

DOROTEIA GÊMEA- Queridos, estamos de volta no ar. E para nos dar um último retrato da evolução da situação, nesta quadra do Natal vamos para um directo com o nosso Enviado à Espera, a quem pergunto, desde já, como é que estão as coisas por aí?

ENVIADO À ESPERA- Obrigado, Doroteia, pela pertinente questão que me perguntas (intencional). Devo de informar todos os nossos telespectadores que ainda é Natal por aqui. Todos estão bastante envolvidos no espirito, tirando um ou outro que são contra, e a quem eu tive a oportunidade de perguntar esta questão: porque é que está contra o Natal?

CONTRA 1- Porque desde pequenino que esperei pelo Pai Natal para me trazer as prendas que eu pedia. Mas ele nunca veio, e quando eu fiz 10 anos fui trabalhar e passei a comprar, eu próprio, as minhas prendas.

ENVIADO À ESPERA- E tu, porque é que estás contra?

CONTRA 2- Porque desde pequenino que esperei pelo Pai Natal para me trazer as prendas que eu pedia. Mas ele nunca veio, e quando eu fiz 9 anos fui trabalhar e passei a comprar, eu próprio, as minhas prendas.

ENVIADO À ESPERA- E estas foram algumas das muitas razões invocadas pelos do contra. Mas como eu dizia, a maior parte está a celebrar e, neste preciso momento (olha para os relógios no pulso direito e no esquerdo) devem de estar a começar a comer. Atenção: 5, 4, 3, 2, 1, começar. A chuva, entretanto, segundo fontes seguras, recolheu-se para descansar um pouco da longa viagem que volta e meia tem de empreender por esse mundo abaixo. E é tudo por ora. Marques.

MARQUES GÊMEO- Gracias, À Espera. E do desporto também não há nada para relatar, por enquanto. Pedro.

PEDRO DE ONTEM- Caso para dizer que não há duas sem três. Doroteia.

DOROTEIA GÊMEA- Grandes homens; como os ratos, todos abandonam o navio quando ele se começa a afundar. Pois vou já tratar-vos da saúde. Do nosso Corespondente Opinioso, com o Estado de Saúde da Saúde Obscura na sua rubrica favorita: “Esta é a Minha Opinião Final”

CORRESPONDENTE OPINIOSO- Não havia necessidade mas havia urgência na chamada telefónica para as emergências. Este, meus caros telespectadores poderia ser o inicio de uma história de ficção, mas não, foi apenas uma chamada telefónica para os bombeiros voluntários de Ajuda Por Favor. A vítima não era uma vitima qualquer. A vitima, meus caros, era a saúde dela. A vitima, meus caros, era a saude dele. Mas quem era ela? E quem era ele? Estas são as perguntas que se fazem constantemente no obscuro mundo saudável: ela era beleza, ele, um completo mistério com ni; ela era uma gandiosa lista, ele, um dos pacientes; ela era uma espera, ele, um congresso e tal; ela era o menos, ele, tudo mais; ela foi quase uma rosa, ele, quase um genérico; e de fama em fama encheram-se: elas deles, e eles delas. Mas tudo vai bem na saúde, isto porque as pessoas, cada vez mais, não se queixam de nada; parece que está tudo bem.

E vários populares, como se estivessem numa manifestação de apoio à saúde gritam:
«Viva o oceano atlântico e a sua brisa saudável! Viva!
Viva os nossos vizinhos castelhanos, pela águas medicinais que partilham comnosco! Viva!
Viva a comunidade pela boleia e pela paciência! Viva!
Viva Portugal! Viva!
Vivamos antes de tudo! Viva!»

CORRESPONDENTE OPINIOSO- Estas, senhoras e senhores telespectadoras/e\dores, foram algumas das mensagens que os populares desta nação, quase ao escurecer, quiseram deixar no ar; um talvez muito obrigado por tudo, a roçar quase o pedido de desculpa pelo incómodo, com que, pela boa educação que recebemos na escola, estamos sempre a brindar quem é mais do que nós. Na vida, claro. E, como já puderam perceber, a Educação será a minha próxima celebração. Eu sou o Correspondente Opinioso e esta é “A Minha Opinião Final”. Obrigado e até para já. (propositado)

JOSÉ DA MANHÃ- Foi o Correspondente Opinioso, que voltará mais tarde, e no seu estilo habitual.
E como não há estilo tão masculino como o feminino, temos, novamente, aqui no estúdio, a nossa convidada fixa Maria Sou Eu, especialista em Cegueira Temporária, e às vezes Total, para nos falar, desta vez na sua outra especialidade, do ser mulher a tempo inteiro. Pois queria começar por perguntar-te se te lembras quantos namorados já tiveste?

MARIA SOU EU- Mas queres saber sobre aquelas relações sérias, ou também incluo as outras?

JOSÉ DA MANHÃ- Todas!

MARIA SOU EU- Bom, é um bocado confrangedor, mas como vocês me pagam, cá vai. Aqueles namoricos para umas saidas de vez em quando foram... deixa ver... quatro... sete... onze, é, foram onze. Namoricos a sério... deixa ver... não tenho bem a certeza mas parece-me que... não, não tive nenhum, ainda.

JOSÉ DA MANHÃ- Ai! Que malandra que tu és. Olha, eu nem uma coisa nem outra. É de casa para o trabalho, e do trabalho para casa. Ainda não tive tempo para essas coisas. A minha mãe, e ela sabe bem o que diz, até me disse que eu estou bem sózinho, e que enquanto ela for viva tratará de mim bem melhor do que essas galdérias que para ai andam no engate descarado. Bom, comigo nunca se meteram, é verdade, mas a minha mãe lá que sabe sabe. Mas, diz-me, como é que as mulheres vêm a vida a dois, quero dizer, a vida de casadas?

MARIA SOU EU- Honestamente não sei, mas pelo que experienciei lá em casa com os meus pais, a vida a dois é uma aventura constante. O meu pai sempre foi muito educado para com a minha mãe; nunca interferiu no trabalho doméstico, deixando-a fazer tudo ao seu gosto. Ele até tinha um dito muito engraçado: «Na casa manda a minha mulher, mas na cama sou eu quem dá as ordens», achava-lhe muita piada, se bem que nunca percebi muito bem o sentido da frase, porque na cama dorme-se, não é José?

JOSÉ DA MANHÃ- Sim, é o que eu costumo fazer. E quanto à tua educação familiar, como é que foi?

MARIA SOU EU- Lá por casa foi sempre a minha mãe que me deu todas as orientações: como bordar, passar a ferro, cozinhar, como fazer a arrumação da casa, e até quando eu tive a minha primeira menstruação, também foi ela que me explicou que não me preocupasse, aquilo queria dizer que eu já era uma mulherzinha, também.

JOSÉ DA MANHÃ- É, comigo foi também a minha mãe que me ensinou e explicou tudo. Quero dizer, quase tudo. Houve um assunto que ela nunca quis tocar ou melhor, que era pecado: o porquê da minha pilinha, para além de servir para o chichi, crescia como o nariz do Pinóquio quando mentia. Nunca me explicou e eu sempre lhe dizia: «Mãezinha, eu não estou a mentir mas quando olho para a filha da vizinha fico assim». Coisas da vida que a vida não explica. Mas já agora, diz-me o que é que tu sabes sobre este assunto de crescer sem mentir.

MARIA SOU EU- Ai! José, que indecência. Não se fala disso em frente das outras pessoas. Em frente das câmaras ainda vá lá, mas por detrás das câmaras estão seres humanos, que podem sentir-se ofendidos com a questão. Ai! Que eu estou a ficar corada.

DOROTEIA GÊMEA- Oh! Maria, então se ele não sabe porque é que não lhe explicas. E não é pecado nenhum as pessoas falarem pelo nariz. Chama-se, em linguagem corrente, eco nasal, não é?

MARIA SOU EU- Eco! Mas que eco? Ecografia é o que dá esse eco nasal. Mudemos de assunto.

DOROTEIA GÊMEA- Sim, vamos para um curto intervalo, e voltamos já a seguir para a segunda parte da nossa viagem por essa cultura obscura. Até.

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
QUANDO UMA MENINA LHE FIZER PARAGEM ISSO NÃO É UM INSULTO, NEM UM CONVITE, TÃO POUCO QUE ELA LHE QUER FALAR. MAS NÃO FIQUE CONFUSO NEM DESESPERADO SE NÃO SOUBER O QUE FAZER COM ELA: SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, ONDE TUDO O QUE PRECISA PARA O SEU LAR ESTÁ AO SEU DISPOR E QUEM SABE SERÁ A CHAVE PARA ABRIR UMA PORTA DESCONHECIDA ATÉ ENTÃO. DESCONTOS PARA DIVORCIADOS.

DOROTEIA GÊMEA- E vamos, novamente, por esse pais obscurecido fora, ao encontro do que falta encontrar. O Nuno Repetente continuou a pesquisar as histórias que poderemos ver neste belíssimo documentário, também ele realizado pelo realizador Pedro Também de Cá.

NUNO REPETENTE- «Ó da Guarda!» Diz-se por esse pais fora quando se precisa de ajuda. Tal não aconteceu com os arquitetos do celebradíssimo monumento internacional à morte dos animais para consumo nos talhos, que num curto espaço de tempo planeou, esboçou e arrecadou todos os pormenores para a virtual construção, em papel vegetal, de um magnifico Matadouro, assim se chamava antes de desaparecer por obra e graça de um desaterro autárquico. Mas a história não só é de flagrante importância para a cultura da região, como um perfeito mostruário das capacidades artístas de alguns artistas mais populares, e que tão erradamente foram adjectivados de “pimba”, desta nação obscurecida tão carenciada de cérebros que, dia-após-dia, saem do país atraidos por outros países de olho neles. Felizmente ainda por cá vão ficando muitos, e bons. E é caso para um desses exemplos mais flagrantes, o de um senhor presidente, por acaso do meu clube do coração, que veio dar à costa norte, ou era sul, tenho de confirmar, do Porto. Este artista, um poeta popular digamos assim, é responsável por alguns dos mais belos poemas nacionais -Cantar de Galo, assim baptizado pelas óbvias semelhanças entre esta pessoa e, os machos das galinhas, que não permitem mais nenhum nas suas respectivas capoeiras. O seu livro de memórias vai já na penta edição consecutiva, mas, ao que parece, tão cedo não vai haver nenhuma reedição já que o original se perdeu algures nos, também, desaterros municipais ao longo do rio Douro às Antas. E já que falamos de poetas, há um que por azedo é desconhecido mas quando se fala de Ordem todos o lembram como mais um que quis ser caçador de aves raras. E na sua senda foi depenando pena após pena, sem ter pena parece, nem piedade, nem sala que chegasse para tanta pena depenada. E tantas lágrimas foram derramadas no rosário de contas e de vigários que o conto, ou novela não se sabe, naufragou a bordo de embarcação luxuosa num dia cheio de luz com alguns ventos oriundos da costa inglesa; sorte a minha, poderão dizer alguns. Não menos interessante, é a paciência de santo do senhor Leão, careca de tanto cabecear bolas para todos os lados menos para o que devia. E entre uma que foi parar a África, num engano qualquer, e outra que parecia um roquete lunar lá conseguiu a proeza de, laboriosamente como um alentejano, conseguir o primeiro prémio num concurso de jogos florais, com dois poemas de versos livres em redondilha maior intitulados: “O Leão esfomeado” e “Desde a última vez”. E de comemoração estão os rapazes dos quadrados euro-africanos que, árduamente, ao lado do filho do pai, qual deles o melhor a fazer sopa de nabos, lograram escrever um dos raros capítulos, de entre coimas e cominhos, nos anais do receituário vegetal pelos campos literários da nação; caso para dizer boa visão do futuro. Parabéns, a estes homens que nos guiam pelos caminhos desbravados à força bruta, e suado desinteresse.

DOROTEIA GÊMEA- Um curto intervalo para descanso do actor, que vem do interior. Ele começa já a falar de novo; ainda a neve não chegou à montanha.

NUNO REPETENTE- Obrigado, Doroteia.

E somente com o movimento dos lábios diz: ADORO-TE!

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
QUANDO TIVER UM GRUPO DE AMIGOS E OS QUISER LEVAR A ANDAR AO VENTO, À VELA, OU A REMOS PUXANDO COM ARDOR JÁ SABE,VENHA ATÉ NÓS: SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, ONDE VOCÊ, SE FOR DE SORTE, PODE COMPRAR, SE TIVER DINHEIRO, UM BARCO PARA QUALQUER OCASIÃO! DESCONTOS? SÓ NA VIA VERDE.

DOROTEIA GÊMEA- Nuno, podes continuar com o teu documentário.

NUNO REPETENTE- E às mulheres de sangue azul também. E uma há cuja especialidade é a de, por devoção, pintar de azul o azul do céu em sacos de esmola. E tão bem pintado fica que nem se sabe qual é o verdadeiro ou o falso. Brilhante! Esta é a nossa cultura mais enraizada, visível, uma vez mais, no sul, no norte e também no interior deste pais obscuro. No próximo programa vamos conhecer o pintor/revisor de comboios e a actriz/hospedeira de aviões. Até lá.

PEDRO DE ONTEM- E a noticia que se segue tem aquele sabor característico do saber Obscuro. Um obscurecido mais iluminado, no desemprego, teve a brilhante ideia de patentear todas as doenças conhecidas, assim como as ainda desconhecidas, e, de um dia para o outro transformou-se no obscuro mais rico do planeta. Na peça que se segue, a Carla Já Sabiam entrevistou-o, ainda na cama, ao amanhecer, sobre a sua vanguardista visão para os negócios.

CARLA JÁ SABIAM- Como é que se chama?

DESCONHECIDO- Eu chamo-me Norne Borne.

CARLA JÁ SABIAM- Pode-nos contar como surgiu a ideia para este negócio fabuloso?

NORNE BORNE- Nem sempre é facil termos presente quando nos surgiu uma determinada ideia, mas neste caso ela estará para sempre ligada ao facto de eu ter adoecido, súbitamente e sem sintomas prévios, com uma diarreia. Após alguns dias de sofrimento ininterrupto, e de uma estadia forçada na retrete suportando um insuportável mau cheiro disse para comigo: «Tanto sofri que está na hora de receber o devido pagamento!» Daí até decidir patentear todas as doenças, conhecidas ou não, foram apenas os dias que levei para recuperar da forçada desidratação.

CARLA JÁ SABIAM- E não encontrou resistências por parte dos organismos bacteriológicos, infecto-contagiosos, virais e por demais?

NORNE BORNE- Não! O problema maior foi a divisão dos lucros, porque isto é uma joint-venture entre a NASCE, que é a minha empresa, e a MORRE, que é a empresa que recolhe os royalties das doenças todas. Após dolorosas horas de negociação e de argumentação acordei em oferecer-lhes uma percentagem de 1% por cada doença, e 1,5% em caso de morte após doença prolongada. Esta minha oferta foi rejeitada um par de vezes mas após uma curta, mas intensa, conferência foi aceite por unanimidade.

CARLA JÁ SABIAM- E quanto aos doentes própriamente ditos, não houve reclamações, queixas, amuos e coisas assim?

NORNE BORNE- A príncipio ficaram relutantes mas quando lhes disse que esta era uma lacuna que a minha empresa vinha preencher no mercado das doenças, e que a partir de agora todos seriam avisados préviamente de qualquer doença com que fossem contemplados, todos baixaram as resistências e aderiram espontâneamente à ideia.

CARLA JÁ SABIAM- E quanto à classe médica, estes sempre serão os mais prejudicados, principalmente os seus postos de trabalho?

NORNE BORNE- Pelo contrário. Com a automatização de todo o processo doentio prevemos aumentar a nossa capacidade produtiva em mais de 100% ao ano. Escusado será dizer que nem um ai ouve da parte deles, só um: «uau!»

CARLA JÁ SABIAM- e como é que se processa todo o processo de fornecimento e pagamento das doenças?

NORNE BORNE- Todas as doenças são enviadas à cobrança através do nosso serviço motorizado de doença-expresso-ao-domicilio. O valor por nós cobrado incide em dois factores: 1-duração previsível;
2-duração imprevisível.
No primeiro caso as pessoas pagam o valor fixo, enquanto no segundo pagam o fixo mais o extra atendendo ao número de dias que estiveram doentes para além do previsto. Como pode constatar, o nosso cliente está sempre em primeiro lugar recebendo doenças de qualidade registada, autenticadas com o respectivo selo de garantia.

CARLA JÁ SABIAM- E já agora, quais são as mais solicitadas?

NORNE BORNE- São as doenças mais obcuras, especialmente as do foro pessoal.

CARLA JÁ SABIAM- E há a possibilidade de devolver alguma doença que não esteja dentro do prazo de validade?

NORNE BORNE- Até ao presente não recebemos qualquer devolução, pelo que deduzo que todos os nosso clientes estão satisfeitos.
CARLA JÁ SABIAM- Pedimos desculpa, mas somos forçados a interromper esta emissão para um especial sobre a Garra no Deserto. Vamos, imediatamente, para o nosso Enviado à Espera.

ENVIADO À ESPERA- Muito obrigado Carla. A noticia caiu como uma bomba, inteligente, nas principais redacções mundiais. Ainda mal refeitas do anormal volume de parvalheira que as vem assolando nos últimos anos, assim como o arrasante ritmo, com bandas sonoras de martelar a paciência -até de um eunuco, a que vomitam as notas anotadas. Foi, dizia eu, uma autêntica benesse este tão esperado acontecimento, em decurso num outro país obscuro: o Tic-a-Tac. A Garra no Deserto é o culminar de anos de trabalho laborioso de uns poucos estrategos, sem qualquer soldo, que está prestes a culminar no êxtase mais ansiado do novo século, e permitam-me aqui um pequeno extravasamento: eu acredito que será o século da comunicação tecnológica, que permitirá descobrir a beleza, a diversidade, o extraordinário e o grandioso que este mundo têm para oferecer. E, creio, será o grande catalisador para unir a desunião, democratizar a ditadura, comunicar sem apanhar chuva, e virar uma nova página de progresso, bem-estar, diversidade, igualdade, educação, riqueza, casas, hospitais e carros para todos sem exclusão. Voltando, então, ao assunto deste directo especial, iniciou-se, mais ou menos à hora prevista, a Garra no Deserto, nome de código da operação cirúrgica, com os meios mais sofisticados ao alcance da mão, para a remoção do tumor maligno que foi diagnosticado a um dos nossos queridos irmãos. Mais do que a remoção, o que os responsáveis por tão delicada cirurgia pretendem é a aniquilação total do gene maligno. Ainda não foi anunciada qualquer intenção para patentear o conhecimento colateral que venha a ser adquirido, mas, asseguram-me fonte próximas, que este é um pequeno passo para os homens e mulheres apinhados no teatro de operações, mas gratuito/de boa vontade. Escusado será dizer que os camarotes e lugares de honra estão, como seria de esperar, reservados para as altas individualidades da politica, da religião e da militar que não querem deixar de estar presentes em tão solvente ocasião.

JOSÉ DA MANHÃ- Desculpa interromper-te, Enviado à Espera, mas queria perguntar-te algo de premente. Como é que foi que o diagnóstico foi diagnosticado?

ENVIADO À ESPERA- Bom, José, foi na manhã de um dia de sol, por acaso um domingo, após o pequeno almoço. E, também por acaso, o paciente estava em jejum. Mas, segundo o mito entretanto criado, um dos responsáveis pelo diagnóstico, e consequentemente pela remoção, abeirou-se de uma das janelas, diz-se que virada para o norte da casa, e, após uma olhadela demorada para o sol, teve a brilhante visão que viria a resolver o quebra cabeças que lhes trazia as mãos e os pés trocados. Depois, virou-se para dentro da casa, ainda com os olhos brilhando com uma intensidade amarelo-adocicada disse aos seus: «É um tumor! É um tumor! Removamos o tumor!» ao que todos aplaudiram prolongadamente. Mais tarde, e após um lauto almoço, regado com vinho engarrafado, foi esboçado o primeiro esboço para a remoção. Já ao fim do dia, durante o frugal jantar, o esboço transformou-se em plano afectivo e definitivo. Foi, no entanto, decidio dar algum tempo ao tumor para monitorizar a sua real evolução, e para evitar qualquer precipitada precipitação. Decorrido apenas algum do planeado tempo, a monitorização transformou-se em motorização e o inevitável arranque da operação foi inevitável.

PEDRO DE ONTEM- Desculpa-me, também, Enviado à Espera, mas gostaria de perguntar-te qual é, afinal, o tumor? É que estamos, já, com alguns reporteres de rua, que, porta a porta, querem saber a opinião do povo, mais concretamente o que pensam, ou qual a mensagem que gostariam de expressar sobre este grandioso momento da dupla história fotocopiada de histórias anteriores, e, impressionamtemente, algumas das palavras recolhidas pelos nossos diversos reporteres de rua têm como denominador comum a questão sobre se é transmissivel, e se são necessárias precauções especiais caso o seja.

ENVIADO À ESPERA- Bom, Pedro, ainda ontem em conversa telefónica com um amigo de um dos cirurgiões, percebi que ainda não era bem claro a extensão, quer da área afectada, quer da teórica evolução do problema. Análises várias estavam a ser efectuadas em diversos departamentos, assim como uma pesquisa acurada de toda a informação recolhida, préviamente e posteriormente, num claro movimento de antecipação de eventuais potenciais cenários. Inclusivé, foi convidado um reputado encenador internacional para encenar, dramáticamente, os eventuais potenciais cenários. E, não menos importante, recebi uma dica de que poderia ser convidado um coreagrafo também; isto em caso de a dança começar a dançar ao som de sons mais pesados. De volta a ti Pedro de Ontem.

PEDRO DE ONTEM- Muito obrigado Enviado à Espera. Voltaremos a ti quando for necessário. Por agora seguimos com a nossa emissão normal. De volta a ti Carla Já Sabiam, e ao teu convidado Norne Borne.

CARLA JÁ SABIAM- Obrigado Pedro. Norne Borne, mais alguma novidade para dar-mos aos nosso devotados espectadores?

NORNE BORNE- Bom, há uma possivel grande novidade, mas não sei se será oportuno ir-mos por aí.

NUNO REPETENTE- Se me permites, Carla, gostaria de dar-te uma ajuda. Creio que é altura de pressionar o teu convidado que não me parece querer colaborar como está estipulado no contrato que assinou com a nossa estação. Pois senhor Borne, sabe que eu sei, através das minhas fontes horizontais, que está em vias de registar uma nova patente, para um negócio ainda mais espectacular do que o das doenças. Quer abrir o jogo ou...

NORNE BORNE- Bom, o segredo é a alma do negócio, mas creio que já é seguro, uma vez que o registo da patente foi entregue, e apenas aguardamos a sua aceitação.

CARLA JÁ SABIAM- Ah! Ah! Com que então a querer enconder-me todos os detalhes, e principalmente quando eu me entreguei de corpo e alma na realização desta entrevista.

NORNE BORNE- Mas, ò Carla, eu estava prestes a dar-lhe tudo o que...

CARLA JÁ SABIAM- Sim, sim. Pois dê-nos lá...

REPORTER DE LÃ- Já posso ir para o ar, outra vez? De certeza?

CARLA JÁ SABIAM- Não, ainda não. Mas tu, Norne Borne, tu sim.

NORNE BORNE- Carla, a ideia que quero patentear é das mais revolucionárias que um ser humano jamais foi capaz de ter; e não creio que algum dia venha a existir algo de semelhante. Quero patentear o oxigénio, e o seu consumo, a nivel mundial para já, e, mais tarde, universalmente. Como é bom de ver, não há absolutamente necessidade alguma de investir um tostão; só receber, online, a taxa que cada um terá de pagar para respirar. Este é, seguramente, o exemplo perfeito do funcionamento da lei do mercado livre, onde o empresário inova, e o mundo benefecia...

NUNO REPETENTE- Temo que tenhamos de ficar por aqui. A noticia de última hora que estourou, recentemente, na nossa redacção, voltOU à ribalta. O nosso Enviado À Espera, foi destacado para nos dar as últimas da Garra do Deserto, isto apesar de ele estar ainda no aeroporto da localidade onde esteve até agora, à espera de ir para lá, pessoalmente. A palavra é tua Enviado.

ENVIADO À ESPERA- Grande acontecimento, o primeiro do século XXI, este que se iniciou há coisa de uns momentos. Segundo as minhas fontes, a remoção do tumor encontrado num dos irmãos do país Tic-a-Tac continua, apesar de alguns contratempos. As minhas fontes, embebidas nas forças da co-a-lição universitária, distribuiem-se pelas diversas salas de aula à volta do teatro das operações, e relatam que apesar de haver muitos anos de atraso tudo será mais fácil, já que está planeado arrumar com o atraso sem dar atenção ao lapso de tempo. Afirmam, também, que está a fazer-se história de uma forma inovadora na dança comtemporânea: Coreografia Dessincronizada. Da autoria de alguns bailarinos veteranos, têm como bailadores principais alguns dos mais proeminentes novos valores chegados aos palcos internacionais. Mas, creio que vale mais uma imagem do que as muitas palavras que eu possa angariar do fundo do meu reportório milenar. Deixo-vos, então, com essas imagens dignas de registo, enquanto me remeto ao silêncio e embarco no avião que me espera. Despeço-me até à minha chegada ao país do Tic-a-Tac.

PEDRO DE ONTEM- O nosso obrigado ao Enviado à Espera, e também ao nosso convidado Nuno Borne, de quem nos despedimos até uma próxima oportunidade. Teremos, de seguida, uma prestação jornalistíca do nosso Correspondente Opinioso, recém chegado do pais ao lado, onde, pelas vistas, nos diagnosticaram uma depressão. A palavra é tua, Correspondente Opinioso.

CORRESPONDENTE OPINIOSO- O diagnóstico é, em minha opinião, demasiado catastrofista, parafraseando o comum do palavreado politico nacional. Reza o diagnóstico que a prestação de certos expertos nacionais nas emissões nobres das tele-visões rectangulares têm audiências que superam as da Rola-que-Bola, as das Nove-Velas, e as da Casa da Grande Irmandade. Um dos expertos é o conhecido politico Mar Belo de Usa que afirmou, e passo a citar: «... Não houve tempo para assimilarmos tantos acontecimentos». Tendo, antes, afirmado: «...provocou uma série de choques emocionais, morais, éticos, politicos e económicos que resultam da falta...». Devido à complexidade das declarações, que me deixaram, primeiro confuso, e, depois, irritado, por não ter havido uma referência aos choques frontais, laterais, traseirais e trambolhais, que assolam a totalidade rodo(des)viária do país nas últimas décadas. Esses, sim, causa maior, não só de depressão, mas também de amputação, de comportamentos desviantes e de crescimento económico sem par na indústria Bate-chapas.

PEDRO DE ONTEM- Mas, Opinioso, porque ficaste, primeiro confuso e, segundo, irritado?

CORRESPONDENTE OPINIOSO- Fiquei confuso, primeiro, porque não vi ponta por onde se pudesse pegar na esperteza do referido experto, assim como de muitos outros. Fiquei irritado, segundo, porque o à vontade com que a experteza flui das cadeiras para as câmaras, e das câmaras para os caixotes caseiros, deixa um rasto de verborreia que polui a minha sensível antena parabólica, entupindo-a com pegajosas para-bólas de curta duração, como se estivessem a esvaziar bolas à mão, ou a encher/atestar pneus a sopro.

MARIA SOU EU- E nesse diagnóstico, que me parece pra-eliminar, houve espaço para prescrever alguma receita milagrosa, Opinioso?

CORRESPONDENTE OPINIOSO- Sim... e não. Mas, e esta é a minha esperteza particular, creio que devido à fácil prescrição de tudo pelos quatro cantos do nosso Obscuro país, prescrever qualquer remedeio poderia trazer problemas de direitos de autor com o Congresso Medicinal Alternativo Nacional Anual, assim como não passar de uma metáfora pleonástica. Ainda se fosse uma prescrição de caracter genérico...

Um grupo de adolescentes põem cartazes no ar com a seguinte mensagem:
QUANDO UM GRUPO DE AMIGOS O QUISER LEVAR A BRINCAR AO ESCONDE-ESCONDE, PERGUNTE PARA ONDE O PRETENDEM LEVAR ANTES DE LHE VENDAREM OS OLHOS E, MUITO IMPORTANTE,VENHA ATÉ NÓS, DEPOIS: SUPERMERCADOS PORTA ABERTA, ONDE VOCÊ PODERÁ ENCONTRAR DOSES MACIÇAS DE AMACIADORES... PARA LAVAR A VENDA... MAIS TARDE!

JOSÉ DA MANHÃ- Uma notícia de ultima hora, e que pesou muito na decisão do chefe de redacção em interromper a emissão para vo-la comunicar.
Reunidos de emergência, vários governos do mundo obscuro, tentam chegar a um acordo para acabar com a vida miserável dos obesos. Primeiro pensou-se em doar mais alimentos aos países mais obscurecidos. Segundo, e muito rapidamente, decidiram que não, que o melhor seria atacar o problema pela raiz –que neste caso já é cultural- e responsabilizar os fornecedores. E como vêm sendo habitual, os dois pesos pesados mais obscuros dirimem-se e discordam; quer de razões, quer de soluções. Mas para nos determos num olhar mais profundo, temos como convidado o Cândido Repetido, especialista em assuntos dispersos, a quem pergunto quem é que deve de ser responsabilizado?

CÂNDIDO REPETIDO- Pois na minha perpectiva, a principal responsabilidade é do capitalismo e da psicologia. Bom, vivemos numa sociedade que abraçou o capitalismo como se fosse parte da nossa capacidade reprodutora –vulgo sexo-vulgo acasalar- e, como tal, precisa de competir para vencer os que serão, obviamente, os derrotados. E se até há já algum tempo, no passado, essa competição era obra do acaso, agora aliaram-se à psicologia e... bum! Formula mágica: a psicologia investiga, o capitalismo apropria-se, e o cidadão obscurecido engorda. E porquê? Porque come o que não deve, e sentado em sofás fornecidos pelo capitalismo. Porque vê a televisão do capitalismo e come, mais, ainda sentado no sofá. Porque compra um e leva dois pelo preço de meio, indo, de imediato sentar-se no sofá. E, por último, quando se começa a sentir mal, estéticamente, vai tratar-se ao psicólogo e, claro, deita-se no sofá.